Deixo-vos um notável artigo de opinião de GUSTAVO CARDOSO no Público sobre a situação da crise na Grécia. A ler no Público.
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Uma mosca grega na sopa europeia
Com
esta frase Paul Mason terminava o seu apontamento para o Channel4 inglês sobre
a situação na Grécia. Aliás, de repente, todos têm analogias para a Grécia, há
quem fale de moscas e há quem fale de cirrose, o que não é nada tranquilizante
pois pode querer dizer que a Europa é alcoólica.
Todos os que exercem poder
na Europa parecem preferir que a Grécia desapareça, pois tudo seria certamente
mais simples sem esta grande "chatice" que é ter um "problema
grego" – até há quem designe o país como cirrose, levando a questionar se
a Grécia é o fígado da Europa e levando a concluir que a Europa é alcoólica em
último grau e que, portanto, ou faz uma cura forçada, um transplante imediato
ou morre.
Mas
também o cidadão normal parece contagiado por sentir que é necessário ter uma
opinião sobre a Grécia. "Eles que saiam", li num comentário num
jornal online, outros dizem no Facebook "não vou pagar reformas aos
55 anos quando aqui já vamos nos sessentas".
No
fim de contas, como sempre, há desinformação a rodos, lançada pelos próprios
intervenientes e muitas vezes mesmo por aqueles que deveriam zelar pela
normalidade, isto é, os próprios governantes dos países Europeus e altos
funcionários da Comissão.
Nestas
negociações não há inocentes em lado nenhum, as posições estão polarizadas e há
uma luta a ganhar e ou ganha a Grécia ou ganham os que se lhe opõem. Mas será
mesmo assim? Talvez seja mais complicado do que isso.
À
primeira vista tudo parece muito claro, há um país que se endividou brutalmente
e portanto tem de ser responsabilizado e pagar. Certo? Talvez não. Indo por
partes do geral para o particular.
Há
várias lutas políticas em campo e depois há a população grega. Não quero dizer
que a Grécia é o equivalente à Espanha de 1936 porque é forte demais, mas no
campo das ideias talvez seja um bom ponto de partida para fazer umreset à espuma dos dias
e ir mais fundo, onde está o que interessa para compreender o que está em jogo.
Em
1936 na Guerra Civil espanhola opunham-se duas forças no terreno, com aliados
estrangeiros extremistas presentes em cada lado à direita e à esquerda e outros
ausentes, como as democracias europeias. Escolho a Guerra Civil Espanhola
porque foi definidora da evolução política dos anos seguintes na Europa tal
como me parece que será a Grécia hoje.
Em
2015 não temos guerra com armas na Grécia (ou pelo menos ainda não a temos),
mas temos uma guerra de palavras em curso entre duas posições extremadas, a do
Syriza e a dos partidos que governaram antes dele (direita e esquerda, Nova
Democracia e PASOK e todos os que se formaram após a sua desintegração).
Não
vale a pena perder muito tempo com esta parte da história, pois após sete anos
de austeridade em Portugal e na Europa toda a gente já teve tempo de escolher
lados e assumir-se como Austeritário e apoiar governos que professam essas
políticas ou assumir-se como não Austeritário e estar do lado dos que acham que
a política deve ser de crescimento e ter austeridade quanto baste.
No
entanto, porque o governo grego resolveu desafiar tudo o que se assumiu como
correcto de ser feito sob a bandeira da austeridade ao nível político europeu e
também na Itália, Espanha, Portugal e Irlanda, estamos realmente num momento definidor.
Ou se começa de novo e se faz um mea culpaparcial,
iniciando-se um novo período ou se continuará em frente para o ano sete da era
da euro-austeridade.
Hoje
estamos já num local muito distante da discussão sobre quem teve a culpa da
crise ter surgido, se os governantes, se os bancos, se outra coisa qualquer.
Neste momento essa é uma discussão que perdeu relevância, o que se está a
discutir é se a solução maioritariamente adoptada na zona euro para lidar com a
crise deve ou não continuar a ser a austeridade só por si.
A
questão central é que os actuais governos alemão, português ou espanhol, os
partidos que fazem parte de coligações no governo na Holanda e Finlândia, bem
como ex-governantes nacionais, agora nas instituições europeias, têm bastante a
perder se a base da sua política for colocada em causa de forma abrupta com uma
qualquer viragem política rápida na Grécia – tanto mais que há eleições ainda a
serem feitas em Portugal e Espanha este ano.
Por
outro lado, toda a gente já percebeu que instituições como o FMI estão
obsoletas, pois não estão estruturadas para lidar com países com moeda única. O
que aconteceu durante as troikas foi um exercício de
incompetência atroz por parte de executantes que não detinham o saber
necessário para lidar com um fenómeno com o qual não se haviam antes
confrontado. Uma vez largados no terreno apenas lhes restava continuar em
frente para não perder a face.
De
algum modo, parte dos problemas políticos actuais com a Grécia advém dessa
incapacidade de encontrar uma forma de o FMI não perder a face na Europa para
que possa continuar a ter face noutras geografias mundiais.
E
quanto à Grécia? São os gregos uns bandidos ou não?
Acho
que é bem mais complicado do que isso. Há várias Grécias. Há a Grécia que
militarmente é hoje o primeiro bastião europeu contra um possível avanço do
Estado Islâmico, agora que a NATO confia menos na Turquia, e que levou um alto
funcionário do Departamento de Estado Norte Americano a dizer a um alto
funcionário dos Negócios Estrangeiros alemão que "os nossos rapazes não
morreram nas praias da Normandia para vocês fazerem o que estão a fazer"
com os gregos.
Há
também a Grécia de um Estado que foi sempre fraco e presa de interesses dos
mais poderosos gregos, que disfarçou a cleptocracia com distribuição de
benesses injustificadas a diferentes partes da classe média-baixa à classe
média alta, sempre com a conivência de Bruxelas que desviou durante quase três
décadas o seu olhar da realidade grega.
Há
também a Grécia do endividamento e do sobre-endividamento ao longo das décadas
de governos socialistas e de direita, os quais sucederam à ditadura dos
coronéis e à guerra civil grega – mas tudo isso já foi há muito tempo e já nada
interessa, dirão alguns, mas interessa, é claro que interessa.
É
verdade que o governo grego actual é responsável pelas medidas tomadas pelos
governos gregos anteriores, assim como o governo alemão actual é responsável
pelas medidas tomadas pelos governos alemães anteriores, mesmo indo até ao
período nazi. É assim que funciona a responsabilidade dos estados, quando se
demonstra que a responsabilidade existe.
E o
que acontece quando se demonstra que nos Balcãs, para além de termos tido
guerras com limpeza étnica na ex-Jugoslávia tivermos também governos
democraticamente eleitos e praticantes de cleptocracia, como na Grécia? Muito
provavelmente teremos de olhar de outra forma para tudo isto porque teremos a
curto prazo responsabilizações criminais ao nível do Tribunal Europeu e que
irão envolver políticos gregos, políticos da Europa do norte e empresários
vários – tal como a comissão do parlamento Grego sobre a dívida ilegal
confirmou na passada quarta-feira.
Tudo
isto é Grécia e tudo isto não é uma mera questão de culpados e inocentes, de
bons e maus, da esquerda ser pior ou melhor do que a direita e vice-versa.
É
precisamente por isso que importa perceber que há actualmente pelo menos três
formas de olhar a Grécia a partir de Portugal. A primeira é "ainda bem que
não somos gregos", a segunda corresponderá a algo como "não são gente
séria, o governo e muitos deles". No entanto, são duas formas pouco
inteligentes de olhar a Grécia.
A
primeira é pouco inteligente porque basta algo mudar para passarmos rapidamente
a dizer algo como "pois, nós e os gregos, o que nos havia de calhar, má
sorte a nossa" – é o tradicional pela boca morre o peixe. Nada do que
se passar na Grécia deixará incólume Portugal, quem disser o contrário pode
fazê-lo porque o papel dos políticos é tranquilizar a população, mas no fundo
estará, se estiver a actuar bem, a colocar em acção um plano de contingência
para minorar os efeitos do que se passar na Grécia.
A
segunda forma de olhar a Grécia é, igualmente, pouco inteligente porque também
nós temos muitos governos e políticos de quem nada nos orgulhamos e generalizar
face aos gregos é o mesmo que dizer que também gostamos de ser gozados por
todos aqueles que, pela Europa fora, consideram os portugueses menos europeus
do que eles e constroem as várias narrativas sobre as inferioridades dos povos
do Sul.
A
forma inteligente de olhar a Grécia é perceber que enquanto não mudarmos a
actual abordagem política e económica (para uma outra qualquer) estaremos a
dizer que achamos bem que, como refere o programa Solidarity4all grego, exista
um país onde: 33% da população esteja sem acesso à segurança social e cuidados
de saúde; haja um aumento de 40% na mortalidade infantil; cerca de 20% de
crianças tenham deixado se ser vacinada; 290 mil crianças tenham ambos os pais
desempregados; 17% da população seja incapaz de suprir as despesas de
alimentação; 44% da população viva abaixo do limiar de pobreza; ocorra uma
quebra de 30% dos rendimentos da famílias; mais de 50% dos jovens estejam
sem emprego; ocorram reduções de pensões na ordem dos 45%; a redução salarial
seja em media de 38% e mais e mais.
Se
acharmos bem que algum país esteja assim e que a culpa é dos que votam nos
governos que elegem e escolhem, que a culpa não está também nas instituições
europeias, no FMI e nos nossos próprios governos, estaremos, muito provavelmente,
a candidatarmos-nos também a sermos apenas mais um país como a Grécia algum
destes dias.
E,
na pior das hipóteses, estaremos a dizer que a Europa da euro-zona não tem
outro futuro que não seja continuar a viver um pesadelo que serálight numas regiões e
muito dark noutras, que não há nada a fazer
quanto às desigualdades, que é mesmo assim, que há uns que têm e outros que não
têm, há os de cima e os de baixo e ai de quem nasce em baixo.
Há
que dar uma oportunidade de fazer diferente do que tem sido feito na Grécia,
porque este governo actual não é feito pelos mesmos políticos gregos que
levaram o país ao endividamento que hoje tem.
Há
que dar uma oportunidade de fazer diferente do que tem sido feito na Grécia,
porque nem todos os políticos que estão em Bruxelas hoje são os mesmos que
comandaram o aumento da dívida e o teste e experimentação de políticas de
aprendiz de feiticeiro na Grécia.
Há
que dar uma oportunidade de fazer diferente do que tem sido feito na Grécia,
porque o FMI necessita de uma desculpa europeia para limpar a face dos seus
próprios erros.
Há
que dar uma oportunidade de fazer diferente do que tem sido feito na Grécia,
porque não se pode brincar com a Síria e Ucrânia ao virar da esquina.
As
dívidas pagam-se, mas podem pagar-se ao longo de cem anos como os ingleses
fizeram após as guerras napoleónicas. Se não dermos essa oportunidade à Grécia
vamos todos pagar muito mais caro e não será só em capital e juros, será também
em democracia, em liberdades, em vidas e em falta de paz.
Este
é um momento definidor e não podemos perder esta oportunidade porque pode
mesmo, durante muito tempo, não haver outra.
Ser
hoje pró-europeu é acreditar que é possível outra Europa diferente da vivida
nos últimos sete anos e que sem resolver os problemas da Grécia não haverá
outra Europa. Não há uma mosca grega na sopa europeia, há sim uma oportunidade
grega para a Europa.
Professor do ISCTE-IUL, em Lisboa, e investigador do College
d'Études Mondiales na FMSH, em Paris"
Link directo: http://www.publico.pt/economia/noticia/uma-mosca-grega-na-sopa-europeia-1699381?page=-1
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